terça-feira, 5 de maio de 2015

Era tudo Sakê

- Às vezes eu custo a crer que eles não estão mais juntos.

- Ele diz que acabou porque tudo virou Sakê.

- Como assim?

- Quando se conheceram, acharam que era o paraíso. Ele achou que era o paraíso. Não, minto, ele não achou nada! Ele tinha um baita de um pé atrás. Não queria se entregar nem a pau - gato escaldado tem medo de água fria. Mas era tudo tão perfeito, que ele arqueou. Dobrou, cedeu, e pulou de cabeça. 

Daí foi aquela coisa, tudo se encaixava, tudo fazia sentido... Era a única pessoa que parecia curtir as mesmas maluquices que ele curtia. Era a única pessoa com quem conseguia sonhar viagens absurdas aos lugares mais inusitados, fazer planos mirabolantes, gostar de natureza, gostar do mesmo prédio velho cor-de-rosa e azul, andar de bicicleta, etc, etc., etc. 

Aí um dia mataram uma garrafa de Sakê num restaurante japonês, e foi sensacional. Conversaram por horas, riram, e foi a primeira vez que ele respirou fundo e pensou "é ela!".

Parecia aquele lance piegas de alma gêmea. Até as mesmas manias de adolescente eles tiveram quando eram adolescentes. E ela era apaixonada por Bossa Nova, MPB, curtia Chico Buarque, e bebia cerveja. E ele, era apaixonado por ela, por Bossa Nova, MPB, curtia Chico Buarque, e bebia cerveja. Acho que foi a única pessoa que ele conheceu que também amava a nona de Beethoven. As outras mulheres pra quem ele dizia isso, geralmente faziam cara de "credo, que nerd", querendo dizer "credo, que nojo!".

Às vezes, ele imaginava como seria delicioso morarem juntos. Ele chegando em casa do trabalho e preparando o jantar, enquanto abriam uma garrafa de vinho. Daí ela reclamaria do trabalho, ele reclamaria também, mas no terceiro gole de vinho eles esqueceriam que pudesse haver tristeza no mundo, e começariam a planejar as férias ou o próximo carnaval enquanto ouviam aquele CD ao vivo do Tom cantando Vinicius.

Daí o tempo passou e um dia ela disse: lembra aquele dia do Sakê? Preciso te contar! Eu odeio Sakê! Mas a noite foi memorável. E eles riram... O Sakê era o de menos. 

Daí o tempo passou, e sabe a MPB? Ela não talvez não gostasse tanto assim... Daí o tempo passou e ela talvez não quisesse realmente viajar para lugares pouco usuais... Aliás, talvez ela nem quisesse viajar. 

Daí o tempo passou, e talvez ela preferisse reclamar do trabalho a beber vinho e planejar viagens... 

Daí o tempo passou, e tudo virou Sakê. E ele percebeu, então, que amou uma ilusão. Ele gostava de Sakê! Só que ela, não. E a vida continua, mas de vez em quando ele lembra daquele vestido preto de bolinhas brancas meio anos 60 e sente uma pontadinha fina lá no fundo do peito...

E nessa hora, apesar de ainda gostar de Chico Buarque, ele vai de Fagner e Cecília Meireles mesmo: "quando penso em você / fecho os olhos de saudade...".  

- Caramba! E agora?

-Ah... Agora, bola pra frente. Com tanta gente no mundo, deve ter alguém por aí que goste de Sakê, né?

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